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O que o videogame me ensinou sobre pistas de dança

Passei minha infância morrendo. Morrendo de novo. E de novo.

10/12/2025 - 10h00min

Doom sem mapa, Mortal Kombat sem saber o fatality, Mario sem saber onde estava o cogumelo secreto. A gente decorava os cenários. O timing exato do pulo de cada personagem. Aquele som específico da parede falsa. Não tinha tutorial pop-up nem linha brilhante te guiando. Você explorava até entender como funcionava e o que deveria fazer.

E quando morria? Game over. Volta para o início e sem checkpoint a cada 30 segundos.

Levei meses para zerar alguns jogos. Não porque eu era ruim (em todos), mas porque era assim que funcionava. Você investia tempo, atenção, paciência, e quando finalmente conseguia, aquilo era seu de um jeito que nenhuma conquista desbloqueada instantaneamente poderia ser.

Hoje olho para a pista de dança e reconheço a mesma lógica.

Não existe auto-save na pista

Aquele momento em que a música te pega de surpresa, quando você finalmente relaxa e para de pensar, quando você troca aquele olhar com um desconhecido que está sentindo exatamente o que você está sentindo, isso não fica salvo em nenhum servidor. Não tem replay. Não tem como "voltar pra aquela parte boa".

Eu cresci decorando rotas de labirintos pixelados. Hoje, minha única preocupação é torcer para o DJ realmente construir uma jornada sonora ao invés de só soltar hit atrás de hit, por exemplo.

São habilidades inúteis e essenciais ao mesmo tempo.

Porque, igual aos jogos que eu jogava, a pista te ensina através da repetição e da falha. Você vai em festas ruins para reconhecer as boas. Dança com o timing errado até encontrar o groove. Tenta se soltar e trava, tenta de novo, até que uma hora você esquece de tentar e simplesmente acontece.

Não tem tutorial para isso, tem experiência.

Mas tem uma diferença fundamental entre aqueles jogos e a pista: nos jogos, eu jogava sozinho

Mesmo quando levava o cartucho para casa do amigo, a gente revezava o controle. Um jogava, outro assistia. Hoje percebo como éramos sozinhos juntos, cada um na sua fase, no seu save, na sua conquista individual.

A pista é o oposto disso.

Ali você não está jogando contra ninguém ou para uma plateia. Você está com as pessoas. Todos na mesma frequência, literalmente. O BPM não é seu nem meu, é nosso. Aquele drop não me pertence, ele acontece em todos nós simultaneamente.

E não tem como fingir presença numa pista. Não tem como dar alt+tab para outra aba da vida quando a música não está te pegando ainda. Ou você está ali, inteiro, disponível para o que vier, ou você simplesmente não está.

É engraçado porque hoje o mundo inteiro virou um jogo com todas as facilidades que eu nunca tive.

Auto-save constante nas redes sociais e tutoriais para tudo no YouTube. O GPS que te leva exatamente onde você quer. Tudo é otimizado, gamificado, recompensado com notificações e likes, a gente nem precisa mais decorar nada, está tudo arquivado na nuvem, a um scroll de distância.

E talvez exatamente por isso a pista tenha se tornado tão necessária.

Porque ali você precisa estar presente sem a rede de segurança do virtual. Você precisa se perder sem GPS emocional. Você precisa se conectar com pessoas reais, que respiram o mesmo ar, que dançam as mesmas batidas, que compartilham aquele silêncio estranho e íntimo quando a música para antes do drop.

Porque igual àqueles jogos, a pista me ensina que nem tudo precisa ser fácil para ser bom.

Socializar de verdade é desconfortável antes de ser libertador, conexão real exige vulnerabilidade, não curadoria. Experiências que transformam a gente são as que não podemos controlar completamente.

Eu não preciso de todas as facilidades que a tecnologia oferece. Cresci sem elas e sei que conseguimos coisas incríveis mesmo errando muito pelo caminho. Mas também não estou aqui romantizando dificuldade pela dificuldade, como se sofrer fosse merecer medalha.

Estou dizendo que existe um valor em experiências que não podem ser pausadas, editadas ou repetidas.

E a pista, essa catedral temporária de graves e agudos, é um dos últimos lugares onde ainda praticamos isso.

Onde ainda aceitamos não ter controle total, ainda permitimos que algo nos surpreenda sem filtro. Onde ainda lembramos que o melhor da vida não está no conforto da previsibilidade, mas no risco do inesperado.

Igual aqueles sábados em que você finalmente zerava o jogo depois de semanas tentando. Você não salvava aquele sentimento, apenas sentia. E era mais do que suficiente.

A pista é meu MK sem fatality, meu Doom sem mapa. Meu espaço de continuar jogando um jogo que ninguém mais tem paciência para jogar: o jogo de estar vivo, por inteiro, agora.

E diferente daqueles cartuchos, esse jogo nunca acaba. Você só precisa ter coragem de apertar start de novo.


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