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Agências fraudulentas e pressão europeia: ex-deputada na Itália diz que o "pior já foi feito" e que agora é preciso "meio de campo" para cidadania

Medida imposta pelo governo do país da primeira-ministra Giorgia Meloni já está em vigor desde 28 de março. Votação definitiva no Congresso deve ocorrer em maio

14/04/2025 - 17h04min

Atualizada em: 14/04/2025 - 17h07min

Mathias Boni
Mathias Boni
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Renata Bueno/Arquivo Pessoal
Após cumprir mandato como deputada, Renata Bueno segue vivendo na Itália.

Deputada na Itália entre 2013 e 2018, a advogada brasileira Renata Bueno conhece bem a política do país europeu. Ela foi a primeira brasileira a ser eleita no parlamento italiano.

Como dezenas de milhões de compatriotas, Renata é descendente de italianos, por isso tem também a cidadania do país europeu, tendo dupla nacionalidade. Em entrevista a Zero Hora, ela fala sobre o decreto recente que restringiu drasticamente as possibilidades de obtenção da cidadania italiana por parte de descendentes nascidos no exterior

Nascida em Brasília, Renata é formada em Direito na Universidade Tuiuti do Paraná, em Curitiba, e tem especialização na Universidade de Pádua e um mestrado na Universidade Tor Vergata de Roma.

Hoje Renata segue morando na Itália, onde atua como advogada e empresária. Mesmo não tendo mais mandato formal, atua na defesa dos direitos da comunidade ítalo-brasileira em território italiano.

Nesta entrevista, a ex-deputada destaca os movimentos de mobilização que estão ocorrendo para tentar amenizar os efeitos da medida.  

Confira a entrevista:

Como você avalia a imposição desse decreto, de forma geral?

O decreto foi muito rígido, muito cruel e muito agressivo com a nossa comunidade de italianos do Exterior. Há muitas questões, mas o principal ponto é que agora somente netos e filhos de pessoas nascidas na Itália podem fazer a cidadania direta automaticamente, como se fazia até o decreto entrar em vigor em 28 de março. 

Antes, era simplesmente apresentar os documentos e pedir reconhecimento da cidadania, que formaliza o reconhecimento de um direito já existente. O decreto é muito claro nisso. 

Agora estamos tentando achar uma brecha para, pelo menos, amenizar alguns dos efeitos do decreto. Na América do Sul, por exemplo, são pouquíssimos os descendentes de italianos que são netos e filhos de cidadãos que nasceram na Itália, pois o grosso do movimento imigratório ocorreu no século 19, então a grande maioria é de pessoas que são de terceira, quarta, quinta geração

Eu mesma sou bisneta de um lado e tataraneta do outro. Então, é bem importante a gente cuidar desses cidadãos, que nasceram italianos por lei, constitucionalmente. Por isso estamos tentando negociar os termos do decreto, para que pelo menos seja modificado em partes. 

Por que você acha que esse decreto foi imposto nesse momento? 

Existem vários motivos. Um deles é a própria União Europeia. A União Europeia e os demais países não permitem essa cidadania ilimitada para gerações, que passa de sangue para sangue, filho para filho, que moram fora do continente europeu. Então, a União Europeia já vinha cobrando esse ajuste há muito tempo da Itália, porque quem tira o passaporte italiano também se torna um cidadão europeu.

Outra questão é uma série de escândalos. Infelizmente, a gente viu nos últimos anos agências fraudulentas que faziam cidadanias italianas utilizando, muitas vezes, documentação falsa. Isso acabou irritando demais as autoridades italianas, também pelo número alto número de pedidos que acabam sendo gerados. 

Esse é um pouco do contexto dessa medida. Então, o ministro das Relações Exteriores e Cooperação Internacional da Itália, Antonio Tajani, da Força Itália, acabou colocando isso na mesa do Colégio de Ministros e conseguiu a aprovação. Essa já era uma demanda mais antiga dele e agora, infelizmente, conseguiu aprovar.

Na América do Sul, por exemplo, são pouquíssimos os descendentes de italianos que são netos e filhos de cidadãos que nasceram na Itália, pois o grosso do movimento imigratório ocorreu no século 19, então a grande maioria é de pessoas que são de terceira, quarta, quinta geração

RENATA BUENO, ADVOGADA E EX-DEPUTADA NA ITÁLIA

Como tem sido a mobilização para tentar reverter, ou no mínimo amenizar, os efeitos do decreto?

O decreto já está em vigor, e é muito radical, corta muitas coisas, principalmente essa questão do limite de gerações para ter a cidadania reconhecida. 

O que nós estamos fazendo é um trabalho de mobilização dos senadores e deputados, enquanto o decreto é regulamentado, até a votação, para que a gente consiga pelo menos amenizar os danos. Já fui a Roma, conversei com senadores, deputados, para reforçar esse nosso sentimento de indignação. 

O projeto está tramitando nas comissões do Senado, e já estão sendo apresentadas as emendas, que são as modificações que cada um pode apresentar. Todo mundo gostaria que não tivesse o limite das gerações, essa é a minha defesa, porém, a situação está posta, e temos que negociar. 

Estamos tentando aumentar esse limite de transmissão para uma terceira ou quarta geração, assim como fazer com que as pessoas que já estavam nas filas, aguardando para dar entrada na documentação, não sejam atingidas pelos efeitos do decreto. 

Para quem precisar passar um período na Itália, enquanto não consegue resolver essa situação, também estamos tentando um visto especial para estar no território italiano. 

O pior já foi feito, que é esse decreto super radical, que já está em vigor. Agora a nossa ideia é tentar negociar um meio de campo.

Há previsão para a votação no plenário do Senado, e depois para apreciação na Câmara de Deputados?

As emendas já estão sendo colocadas essa semana nas comissões. A partir do dia 6, 7 de maio, o projeto já deve ir para votação no plenário. Sendo aprovado no Senado, daí logo já vai para a Câmara, onde deve ser aprovada a segunda votação. E, aprovando na Câmara, a gente já vai saber realmente quais serão as novas regras

O projeto deve ter uma votação rápida porque são 60 dias de prazo, a partir do início da validade do decreto, para que seja totalmente votado e regulamentado. Como começou a valer dia 28 de março, deve ser votado e regulamentado até 28 de maio, se não perde automaticamente seus efeitos. 

O que nós estamos fazendo é um trabalho de mobilização dos senadores e deputados, enquanto o decreto é regulamentado, até a votação, para que a gente consiga pelo menos amenizar os danos

RENATA BUENO, ADVOGADA E EX-DEPUTADA NA ITÁLIA

Pela sua leitura da situação, você acha que o decreto será aprovado no parlamento?

A gente gostaria que não, né? Mas o decreto já está instaurado, e mesmo já existindo uma série de ações questionando a constitucionalidade do decreto, deve ser aprovado, já que foi posto pelo governo, e o governo tem a maioria no parlamento. 

Mas eu senti, principalmente da parte da primeira-ministra Giorgia Meloni, uma vontade de atender esses anseios e essas manifestações. Como foi uma proposta colocada pelo ministro, muito isolada inclusive, e isso é importante dizer, nós temos essa notícia de que a primeira-ministra também ficou um pouco balançada com tanta manifestação contrária e com esse efeito muito radical da medida. 

Trabalhamos com a ideia de que realmente queiram relaxar alguns pontos e encontrar esse acordo que satisfaça, pelo menos em partes, os nossos anseios das comunidades italianas do exterior.

Pela sua explanação, então, você tem um sentimento de que o decreto seja aprovado, mas acredita que tenha uma margem, pelo menos, para uma flexibilização de algumas das novas normas?

Isso, tem sim, realmente acredito que sim. Eu senti bastante isso durante essa última semana que estive em Roma, e isso me deu um pouco de esperança. 

Vamos ver se isso realmente vai acontecer agora durante a votação. Existe uma mobilização muito forte, deputados brasileiros do grupo parlamentar Brasil-Itália estão nos apoiando, assim como o próprio embaixador do Brasil na Itália, Renato Mosca. A gente está tentando unir as forças para tentar realmente essa margem de flexibilização na transição dessas regras da cidadania.

Renata Bueno/Arquivo Pessoal
Renata Bueno foi deputada na Itália entre 2013 e 2018.

Você também é advogada, e muitos advogados aqui no Brasil, que trabalham com a questão da cidadania, têm apontado pontos de inconstitucionalidade no decreto. Há também esses pontos para eventuais questionamentos posteriores da medida na Justiça?

Há sim, sem dúvidas. A questão principal é que o direito à cidadania é um direito de sangue, e a Constituição italiana preza isso. Se é um direito de sangue, não pode ser colocado limitações, e nem mesmo requisitos para sua obtenção, é um direito constitucional. 

Além disso, há vários outros pontos que são passíveis de questionamento. Já há ações que estão sendo na justiça, já conversei também com colegas advogados que estão trabalhando nesse sentido em Roma. Mas como o decreto ainda deve sofrer alterações, e também ainda precisa ser votado, a gente acha melhor esperar para ver o que realmente vai ser regulamentado, para então ver quais são os pontos mais deficientes. Essa é a minha opinião jurídica nesse caso.

Você sente que há na Itália um certo preconceito com descendentes de algumas gerações posteriores?

Olha, eu confesso, tendo sido deputada aqui por cinco anos, que sempre fui muito bem recebida. A gente até ouvia dizer isso, "tem preconceito contra a gente", mas eu não senti isso. Não só fui bem recebida, mas todas as minhas posições, as minhas colocações, sempre foram muito bem aceitas no parlamento

Recebemos manifestações de italianos que dizem se impressionar muito quando vão para o Brasil, para a Argentina, conhecer as colônias italianas, as famílias, o quanto ainda carregam os valores, a cultura, os dialetos. 


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