Fargo é a série ganhadora do Globo de Ouro de Melhor Mini-Série ou Filme Para TV em 2015. Muitos ficaram surpresos com a vitória, talvez porque tenham considerado True Detective melhor.
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As duas séries têm uma dinâmica extremamente parecida: lidam com o sombrio dentro da sociedade e como esse lado distorcido e denegrido pode vencer em vários momentos, e como os mocinhos talvez sejam sombrios também e ambivalentes. Fargo é um estranheza pura. True Detective é desconforto emocional do início ao fim, com um Matthew McConaughey que poderia facilmente ser o vilão, mas é mocinho. Nessa época de mini-séries assim não é difícil pensar em como seria uma série do filme 7even (com Brad Pitt e Morgan Freeman). Uma série de TV naqueles moldes seria excelente.
Voltando ao tema original: algumas pessoas acharam que True Detective não recebeu a premiação devida. Pois eu digo que Fargo é sim melhor. Por um motivo pelo menos: o vilão.
Um bom vilão pode definir se uma obra policial ou de mistério é boa ou não. Quando você pensa em O Silêncio dos Inocentes você não pensa na agente do FBI interpretada pela Jodie Foster, você pensa no criminoso genial, sádico, canibal e sedutor Hannibal Lecter. Quando você pensa em Os Suspeitos você lembra de Keyser Soze; você talvez nem lembre quem eram os policiais que interrogavam Kevin Spacey na delegacia, fazendo ele voltar no tempo e contar sua história. Batman é um personagem muito mais interessante que o Superman por causa de sua origem e suas fraquezas, claro, mas é um personagem muito mais interessante em grande parte por causa da sua galeria de vilões, que é 27 vezes mais legal que a galeria de vilões do Superman. Todo Sherlock precisa ter seu Moriarty.
True Detective tem um vilão pervertido e extremamente perigoso. Mas ele é só isso. A loucura da série está nas relações humanas extremamente deturpadas e principalmente na psiquê alterada do detetive interpretado – com total maestria – por Matthew McConaughey.
Em Fargo, por outro lado, nós temos Satã como vilão.
(Essa é a hora em que se você conseguiu vencer a preguiça e ler até aqui repensar e talvez parar de ler. Haverá spoilers à frente.)
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O personagem de Billy Bob Thornton não explica exatamente sua origem em toda a série Fargo, e ele não existe – neste formato pelo menos – no filme original escrito pelos irmãos Coen. Ele parece ser uma força da natureza, um assassino profissional do qual os outros assassinos profissionais têm medo, do qual até mesmo os seus contratadores, seus “chefes”, têm medo. Ele me lembrou muito o personagem de Javier Bardem, o assassino de cabelinho estranho Anton Chigurh, no filme “Onde Os Fracos Não Têm Vez”.
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Onde Os Fracos Não Têm Vez” foi dirigido pelos Irmãos Coen. “Fargo” – o filme – foi dirigido pelos Irmão Coen. “Fargo” – a série – tem produção executiva dos Irmãos Coen.
Chigurh tem características parecidas com o personagem de Billy Bob Thornton. Um código de honra meio distorcido entre o bem e o mal. Ambos parecem ser incontroláveis e – mais importante – impossíveis de serem detidos. Aparecem do nada. Somem do nada. Não têm ligações. Não têm afeto por nada, nem por dinheiro. Apenas pelo que parece ser o prazer de destruir. De ver a destruição. O caos.
O personagem de Thornton – chamam ele de Malvo – em Fargo coleciona fitas em que pessoas confessam ter cometido crimes para ele. Ele pergunta: “você foi um menino malvado?“, como um tipo de confissão às avessas. Ele gosta de ver o circo pegar fogo. (Provavelmente literalmente). Em determinado momento de um episódio ele some ao descer escadas e ir para o subterrâneo de uma casa. Isso nunca fica explicado na série, e é um dos pouquíssimos momentos quase sobrenaturais em Fargo, porque não há explicação. Ele desce no porão (o submundo?) para ver a mulher morta do personagem Nygaard (Martin Freeman, também conhecido como Dr. Watson ou Bilbo Bolseiro) e simplesmente some. O porão não tem outras saídas. Para onde ele foi?
Em outro momento ele usa as pragas do Egito para convencer um quase-mafioso dono de rede de supermercados a acreditar que Deus está contra ele. Tem coisa mais satânica, ou melhor, mais Loki do que isso?
E finalmente, e ainda mais importante: num dos últimos capítulos de Fargo o assassino Malvo vai à pequena cidade de Bemidje procurar Nyggard, para matá-lo. Lá ele entra na cafeteria do ex-xerife da cidade – pai de uma das policiais protagonistas da série – e puxa papo, tentando descobrir onde Nygaard mora. Enquanto conversa com Lou (Keith Carradine, excelente no papel) ele pede por uma torta. Lou lhe diz: “temos de cereja e de maçã“. E Malvo responde: “De maçã, nada de bom vem de cereja“. Ao provar a torta de maçã ele fala “não como uma torta de maçã tão boa desde o Jardim do Éden“.
Satã como personagem da literatura é algo quase tão antigo como a literatura. John Milton tem uma das representações mais interessantes e famosas em Paraíso Perdido (porém nunca li). A série de quadrinhos Sandman também (esse eu li). Em Moby Dick diversos especialistas especulam que a batalha entre a grande baleia branca e o Capitão Ahab não trata de outra coisa que a batalha eterna entre Deus e o Diabo. Ahab é um personagem complexo, maníaco, enganando todos que encontra para ir em busca do seu grande inimigo, Moby Dick.
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Um desses personagens satânicos aparece no livro Meridiano de Sangue, de Cormac McCarthy. Se você, leitor, ainda está por aqui deixa eu te recomendar este livro. Meridiano de Sangue é um dos livros mais foda que existe. Uma obra prima. Se passa na fronteira de EUA e México por volta de 1840, e todos os personagens são uns desgraçados sem rumo, não há heróis, tudo é uma grande bagunça entre caubóis sem esperança e índios sem lei. E tem um personagem que é o Capitão Ahab do século XX: o Juiz.
O Juiz é um elemento de caos e destruição que aparece em Meridiano de Sangue. Um gigante com feições de bebê, ele não é nem jovem nem velho, não sua no calor do deserto mexicano, não sente frio à noite, sabe tudo sobre tudo sobre todos os países e culturas. E tortura, mata, destrói e lidera chacinas sem problema algum. É um demônio. Talvez seja o demônio. E sente um prazer imenso em ver o caos.
Meridiano de Sangue foi escrito por Cormac McCarthy que escreveu também Onde Os Fracos Não Têm Vez que foi dirigido pelos Irmãos Coen que também dirigiram Fargo, o filme e que são os criadores executivos de Fargo, a série.