tarado super

Quando eu tinha idade escolar a minha mãe me proibiu de voltar a pé da escola, como outras crianças faziam. Eu morava apenas a algumas quadras da onde eu estudava, mas voltar a pé não era uma opção. Tu vês, na minha época, tinha o que chamavam o tarado do sobretudo. Um senhor de meia idade que circulava no bairro mostrando suas partes a jovens garotas que passassem por ali. Por causa dele eu não podia voltar a pé pra casa com meus amigos.

Na semana passada fui ao supermercado e deparei-me com um senhor de muitos e tantos anos bem tranquilo comendo uma banana na área do hortifruti. Nenhuma banana no seu carrinho. Tava ali, de boas, comendo. Pensei comigo, “ok, devem fazer vista grossa pro coitado, que deve ter uma aposentadoria mixuruca e tal“. Fiquei com pena e segui o meu caminho. Mais à frente, e ainda perto de mim, o mesmo senhor chama o gerente do supermercado (o mesmo gerente que tinha feito nenhum esforço pra me atender quando solicitei um produto que faltava). Tendo a atenção exclusiva do gerente, o senhor de cabelos brancos faz um sinal com a cabeça para um dos corredores. Olho intrigada (será que outro alguém estava comendo uma banana furtiva?). No corredor, estava uma garota pouco mais jovem que eu, de shortinhos. Ficaram ali, o senhor de idade jurássica e o gerente em horário de trabalho olhando pra bunda da garota, rindo e fazendo gestos com as mãos.

Ontem, em um supermercado diferente do meu, um vídeo de câmera de segurança* que vazou na internet mostrava uma garota na fila do caixa, e um senhor de meia idade atrás dela com seu carrinho. Ele parece agitado no vídeo, é possível ver que algo está para acontecer. De repente o senhor se abaixa e se coloca debaixo da saia da garota. Ele volta para sua posição na fila. Olha para os lados. Pessoas circulam a sua volta. Mais um momento de agitação e ele repete o movimento, enfiando o rosto embaixo da roupa da garota, na altura de suas coxas. O tempo todo o homem está alvoroçado, impaciente. Excitado. A tela da câmera de segurança mostra aquele que parecia um animal enjaulado, um bicho, um ser que mal podia conter seu ímpeto. Seu desejo. Sua “homice”. As pessoas ao redor parecem não perceber ou não ligar para o que está acontecendo. A garota não percebe que teve as partes inspecionadas, pudera, aquilo era um lugar público, ela sentia-se segura. Ledo engano.

Se voltarmos ao tarado da minha infância, digo que prefiro os tempos onde podíamos apontar para estes cidadãos de modos animalescos. Sacudindo sua masculinidade a luz do dia. Eles eram mais fáceis de serem reconhecidos, e nos davam uma chance de correr, gritar por ajuda, afastarmos do perigo daquele sobretudo que indicava sua identidade monstruosa. Hoje não me sinto mais segura, mesmo sabendo mais do que sabia em idade escolar. Porque hoje os tarados não tem cara, sua imagem não alerta o risco. Eles são garotos bonitos e bem educados, senhores com idade e cara de pai ou velhinhos dando banda no supermercado, para observar de perto muito mais que frutas. Hoje eles querem dar uma conferida de perto até em quem tá na fila do caixa, contando o dinheiro suado (de um salário 30% inferior ao masculino), querendo apenas circular tranquilamente e chegar em casa salva, para cozinhar o próprio jantar.

Aí há quem diga que isso é um detalhe, que temos problemas mais graves como mutilação vaginal, acesso à educação, estupros, opressão estrutural, e eu concordo com tudo isso. Mas o machismo nosso de cada dia está nos detalhes, mostrando que não tem problema nenhum dar uma conferida embaixo da saia da estranha na fila. Nada acontece.

Por que ninguém interferiu? Não sei, não estava lá, mas provavelmente tem algo a ver com “o problema não é meu“, como a maioria pensa sobre a lutas das mulheres. Por que EU não interferi no caso do meu supermercado, chamando atenção de gerente e senhor de idade jurássica olhando a bunda da garota de shortinhos?

Porque o mundo faz vista grossa pra velho-ladrão-tarado-punheteiro. Mas não pisca o olho pra reclamar de feminista revoltada. E eu na minha condição de mulher, às vezes também canso de exigir o óbvio, como respeito.

Escutamos diariamente a revolta com as feministas. “Esquerda“, “mimizentas“, “feminazis“, “politicamente corretas“, “ai que saco, tudo é assédio“, comentários vindos muitas vezes de quem não anda os nossos passos inseguros. Enquanto isso, a maioria enfia o seu machismo onde bem entende: debaixo da nossa saia.

Mas o problema tá na Titi Müller e não no goleiro Bruno. Fala sério.

*Assista aqui o vídeo da câmera de segurança.

antonianodiva.com.br / Facebook/antonianodiva

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