garota lenço

Outubro chegou, e com ele as ruas pintam-se de rosa. A cor sinaliza aquele lembrete anual de que nós, mulheres, devemos tomar as devidas precauções para garantir os nossos preventivos de câncer. Visitas periódicas aos médicos são estimuladas visando o diagnóstico antecipado e prognóstico que possam aumentar as nossas chances de recuperação.  É também um período em que nos lembramos das guerreiras que lutam e lutaram bravamente sob as mais adversas condições. E quase que involuntariamente, um mês que me faz lembrar a história de uma garota muito especial que conheci. A garota do lenço na cabeça.

Eu nunca vou me esquecer da primeira vez que a vi. Era aniversário de uma amiga, e eu conhecia pouca gente no evento, apenas a aniversariante e a Marília – minha melhor amiga.  Após alguns cumprimentos casuais, a Marília se perde por longos minutos no abraço da garota do lenço na cabeça. Eu nunca entendi as mulheres que tapam seus cabelos. Eu sempre tive um caso profundo de amor com minhas longas crinas, uma síndrome de Rapunzel – talvez porque até os 10 anos, minha mãe cortava os meus cabelos extremamente curtos. Desde que pude escolher, sempre cultivava as madeixas longas e esvoaçantes. Nunca escondidas. Nem boné, nem toca, nem chapéu, burca ou lenço. A minha vaidade feminina não me deixava tapar os cabelos.

A Marília me apresentou rapidamente para garota do lenço na cabeça, e logo começou a perguntar como ela estava, e como ia o seu tratamento. Um soco na boca do meu estômago. A garota não tapava os cabelos. Ela não os tinha. Uma consequência óbvia (pra qualquer idiota que não esta que vos fala) do tratamento de quimioterapia. Fiquei com vergonha. Sorri amarelo e quis sentir pena. O desconforto durou apenas um segundo.

A garota do lenço na cabeça era tudo, menos digna de pena. De sorriso largo e olhos brilhantes ela contou tudo à Marília como quem tirava de letra até mesmo a assustadora letra “C”. Falou sobre as rotinas de hospitais, e das férias maravilhosas que ela tinha deles vez que outra. Contou de uma adorável viagem com o namorado, um garoto bonito que segurava suas mãos com carinho. Ela falou animadamente de seu blog, que escrevia para ajudar outras pessoas. Da alegria dos grupos de apoio. Das novidades estéticas que descobrira, como esmaltes que não causavam enjoos e lenços personalizados, mostrando compromisso com sua própria autoestima. E eu preocupada com meus cabelos. Quis engoli-los. Mais que isso. Quis ser amiga da garota do lenço na cabeça.

Eu entendi naquele dia, que não podia em sã consciência não me envolver com aquela pessoa. Não. Eu precisava ser amiga dela! Aquela garota do lenço na cabeça era muita luz. Ela era muita vida. E eu a queria na minha. Comecei a acompanhar o blog e fazer parte da torcida. A cada etapa do tratamento vibrava junto com ela em seus posts animados. Nos menos animados – e estes ainda assim cheios de garra- mandava mensagens de carinho, e ela devolvia outras de gratidão. Sempre muita gratidão.

Um dia, encontrei amigos que há muito tempo não via, e um deles comentou comigo como o meu cabelo estava exageradamente comprido  –“Você deveria considerar doá-los”, ele sugeriu. Não deu outra. Mandei imediatamente uma mensagem pra menina do lenço na cabeça: “Vamos cortar meu cabelo! A gente faz uma ação no teu blog convidando mais gente a doar. Podemos tirar umas fotos, você com a tesoura na mão e meu cabelo na outra, vai ser demais!” Ela riu largo e disse que eu estava maluca. “Mas Antônia, vai cortar esse cabelão lindo?!”. E pela primeira vez eu não vi meu cabelo longo como minha marca registrada, meu frisson feminino. “Ah, mas é SÓ cabelo, não é?!” – “Hahahah. Ok, vamos fazer”, ela respondeu empolgada.

Nos meses que se passaram mantivemos contatos frequentes. Ela tinha uma rotina conturbada com o tratamento. Eu tinha meus compromissos, e a gente tentava fechar um encontro. Ela me mandava fotos dela com seus lenços – que eu passei a admirar. Eu mandava fotos de meus irmãozinhos escovando meu cabelão – “a Mana vai dar o cabelo dela pra titia porque a mana tem um montão e a titia não tem nenhum”, eles contavam na escolinha, entendendo que aquilo era importante. Às vezes a garota do lenço na cabeça ficava desanimada, ou até com vergonha de me fazer esperar tanto tempo para cortar o cabelo. Eu a encorajava – “fique tranquila, vou juntando e só vou cortar o cabelo depois que você sair do hospital”, ela agradecia. Ela sempre agradecia.

Então as nossas agendas se fecharam, e eu estava feliz em finalmente ver de novo a garota do lenço na cabeça. Ao vivo e a cores. E eu queria encontrá-la para tomar doses de sua alegria. Sua energia. Sua coragem. Além disso, eu estava empolgada em doar meu cabelo. Era uma sexta-feira de novembro, semana que antecedia o nosso encontro. A Marília me liga as 7:00 da manhã e pelo telefone, entre soluços inconsoláveis, me informa que a garota do lenço na cabeça havia partido para colorir o céu. Não consegui confortar a Marília. Apenas pedi para que ela tivesse coragem, como a amiga querida que ela havia me apresentado, aquela que em tão pouco tempo de convívio, tamanha admiração havia conquistado.

Eu rezei muito antes de cumprir a minha promessa. Segurei aos cabelos como quem segura a uma corda no penhasco da realidade. Quando os cortei, lágrimas rolaram. A garota do lenço na cabeça não estava segurando a tesoura, ora, talvez estivesse. E mesmo depois de cortá-los, mantive as mexas perto de mim, como um amuleto improvável. Um lembrete diário para ter coragem, alegria e doçura frente à diversidade. Um lembrete diário daquele lenço. Depois de um mês segurando aos cabelos já cortados, resolvi enviá-los para doação.

Desde o nosso primeiro encontro, me pego pensando na garota do lenço na cabeça, cada vez que tenho uma dificuldade. Através da alegria dela eu sempre coloco a minha dor em perspectiva, e penso em quantas guerreiras como ela existem, lutando bravamente e dando o exemplo. Penso que o mundo está mesmo carente de histórias de pessoas que enxergam a vida como um milagre, indiferente da sua trajetória. Se curta ou extensa. Descomplicada ou desafiadora. Resolvi contar história da garota do lenço na cabeça  não porque acho que fiz algo admirável por ela doando os meus cabelos. Mas porque ela fez algo admirável por mim. Ela me tocou com sua história, para que eu pudesse tocar alguém com a minha.  E este ciclo pode ser infinito. Basta que cada um de nós se empenhe em compartilhar um pouco e celebrar muito as histórias de heroínas como esta, de carne, osso e lenço na cabeça. O mundo está precisando de gente assim.

Uma singela e respeitosa homenagem a Eduarda Maíra Rauber, inspiração através do blog Força na Peruca e autora de uma linda história de vida.14_04_14gabriela02viver-180189

Inspire-se com Outubro Rosa. Procure fazer check ups regulares. E sempre que puder, doe seus cabelos para aquelas guerreiras que vão dar todo outro sentindo à suas madeixas. Mais informações sobre pontos de coleta aqui.

Instagram ATL Girls