viajando sozinha corteQuando decidi encarar o mundo lá fora, encarei todo tipo de inquisição sobre os termos da minha partida. “Quem vai te receber?”; “Com quem tu vais ficar?”; “Quem tu conhece de lá?”. As perguntas eram tantas em relação ao que eu conhecia, que não se lembraram de que era justamente o desconhecido que eu buscava. A estranheza na minha decisão de “ir sozinha” era tanta, que ao invés de um MBA na Europa, parecia que eu estava sendo convocada para uma ação de paz no Oriente Médio. As pessoas ficavam chocadas com a minha opção pelo voo solo. “Mas o mundo lá fora é perigoso!” – diziam. Entretanto para mim, o risco de ficar enjaulada não era apenas perigoso, como também fatal. (Já disse – É preciso ir embora!)

Então eu fui. Com um beijo na testa de “juízo!” dado pelo meu pai, e a bênção de minhas asas através do olhar encorajador da minha mãe. Na minha mochila, levei tudo que aprendi sobre ser uma pessoa responsável, ao mesmo passo que curiosa. Na primeira vez que cruzei um oceano, senti um frio enorme na barriga. Não era apenas a ansiedade pelo novo. Era também aquela dorzinha de quem sente o cordão umbilical finalmente sendo partido. Ninguém abriria a porta de casa para mim se eu perdesse as chaves. Ou trocaria o gás, no meio do meu banho. Confortaria-me frente à adversidade. Lá “do outro lado”, não tinha ninguém para facilitar a minha vida. E isso me pareceu uma tremenda oportunidade de testar a minha resiliência encarando os meus próprios desafios.

E como foi bom ver o meu desempenho evoluir. A duras perdas, confesso. Ser uma mulher viajante não é fácil. Em cada retorno para casa, eu rezava para que o motorista de táxi (sempre registrado e de placa memorizada) me entregasse em casa sã e salva. Eu padeci sem companhia quando me roubaram o passaporte em um único minuto de distração. Morri de medo quando, por duas vezes, tentaram entrar na minha casa em meio ao meu sono (nunca mais) tranquilo. Passei a evitar certas ruas, certos horários, certos comportamentos. Virei a única responsável pela minha integridade, e isso exigia outro formato de planejamento.

O que de fato aconteceu é que neste processo é que eu aprendi a amar viajar sozinha. Obedecendo às minhas vontades, atendendo a minha sede de conhecimento (próprio e do mundo) e aprendendo a confiar no meu instinto. #ViajoSozinha porque a estrada é melhor que um divã, porque ela sabe ser uma grande amiga e é um dos meus amores mais avassaladores. Posso não guardar lembranças de antigos romances, mas guardo na memória cada passo e carimbo que colecionei por esse mundo tão grande, quanto pequeno. Tão convidativo, quanto assustador.

Antes de voltar pro Brasil, fiz 12 países e 24 cidades durante 60 dias na estrada. Sim! “Sozinha”! Na ocasião a minha mochila  já carregava mais experiência. Na estrada, aprendi ser boa companhia para mim mesma – finalmente! “Sozinha”, eu me propunha a conhecer outros andarilhos como eu. Iniciava conversas, promovia congregações, mudava de rota, fazia conexões para toda uma vida. Só quem pegou a estrada sabe o quando resignificantes alguns encontros/reencontros podem ser. Aprendi a pedir para alguém cuidar da minha mochila, vigiar meu sono, e sempre que precisei propus “Vamos Juntas” quando me senti vulnerável. Considerando que esse roteiro incluiu desde uma delegacia croata a uma manifestação grega com direito a gás lacrimogêneo, sinto que fui tão abençoada quanto sortuda em minha expedição.

A mesma sorte não tiveram as argentinas Maria José Coni e Marina Menegazzo. Assim como eu, as duas tinham sede de mundo. Ambas jovens corajosas e mulheres viajantes. O problema, segundo a investigação policial no Equador – onde foram assassinadas – é que elas estavam sozinhas. “Sozinhas”. Uma com a outra. Mas como mulheres, “sozinhas”. Não havia um pai que lhes acompanhasse ou um marido, ou um namorado. Talvez um guia homem fosse o necessário para que seus corpos não fossem brutalmente abusados, atacados e descartados em sacos de lixo, ali, na mesma estrada que antes era companheira. As jovens não tinham um pênis que lhes protegesse. “Sozinhas”. Como eu já estive, assim como você já esteve, ou como ainda queremos ter a liberdade de estar.

Eu morri um pouco com Maria José e Marina. Minha liberdade em parte faleceu com as argentinas. Parte do meu lado viajante também pereceu. Antes daquela, que é a semana em que celebra o dia Internacional da Mulher, o incidente no Equador me fez sentir infeliz tanto em ser mulher quanto internacional. O comportamento das jovens turistas foi condenado como “um alto risco e, que de alguma maneira, formava parte do que movimenta o crime. Isso sem tirar o peso da responsabilidade dos agressores”, como alegou o psiquiatra argentino Hugo Narietán – censurando-as como “vítimas propícias”. O QUE?! Ora, o que é este “comportamento de alto risco”, que não o nosso anseio puramente humano de ir e vir?

#ViajoSozinha. Como um ato heroico neste mundo-homem que condena a vítima. Viajo porque gosto. Porque preciso. Viajo sozinha em despeito a quem acha que é dono da minha gaiola, ou do meu corpo livre. Como Maria José e Marina, eu me arrisco a afrontar este plano sendo feliz em movimento – e quando digo “arrisco”, é pelo simples fato de ser mulher, viajante e “sozinha”. Com o pé na estrada e um olho sempre por cima do ombro. Maria José e Mariana não estavam sozinhas. Estavam com todas nós. E se seguirmos culpando as vítimas deste tipo de crime, vamos precisar muito mais que um passaporte e coragem para explorar. Todas nós – mulheres viajantes – teremos que pagar excesso de bagagem por uma dose extra de sorte.

#ViajoSozinha por Maria José Coni e Marina Menegazzo. A quem com todo respeito dedico este texto – de viajante para viajante.

#viajosozinha

por antonianodiva.com.br

 

“Ontem me mataram” texto de Guadalupe Acosta

Eu me recusei a deixar que me tocassem e com um bastão arrebentaram meu crânio. Eu fui esfaqueada e deixada para morrer sangrando.

Como lixo, me colocaram em um saco de lixo preto, enrolado com fita adesiva e fui jogada para a praia, onde horas depois eles me encontraram.

Mas pior que a morte, era a humilhação que se seguiu.

A partir do momento que viram meu corpo morto ninguém se perguntou onde estava o bastardo que acabou com os meus sonhos, minhas esperanças, minha vida.

Não, em vez disso, começaram a me fazer perguntas inúteis. Para mim, você imagina? Uma morta, que não pode falar, que não pode se defender.

Que roupa você usava?

Por que você estava sozinha?

Como uma mulher vai viajar sozinha?

Você estava em um bairro perigoso, o que você espera?

Eles questionaram os meus pais por me darem asas, deixar que eu fosse independente, como qualquer ser humano. Eles dizem que com certeza estávamos nos drogando e procuramos, que fizemos algumas coisa, que deviam ter nos vigiado.

E apenas morta eu percebi que não, que eu não sou igual a um homem. Que a morte era minha culpa, que sempre será. Enquanto que se o título fosse “dois jovens viajantes foram mortos” as pessoas estariam discutindo suas condolências e, com seu falso e hipócrita discurso de falsa moral, exigiriam uma pena maior para os assassinos.

Mas sendo uma mulher, é minimizado. Torna-se menos grave porque, é claro, eu procurei. Fazendo o que eu queria encontrei o que merecia por não ser submissa, não querer ficar em casa, por investir meu dinheiro em meus sonhos. Por isso e muito mais, eu estava condenada.

E eu sofri, porque eu não estou mais aqui. Mas você está. E você é uma mulher. E você tem que aguentar o mesmo discurso de “fazer-se respeitar”, de que a culpa é sua que gritem que querem pegar / lamber / chupar algum de seus genitais na rua por usar um short com calor de 40 graus, de que se você está viajando sozinha é uma “louca” e muito provavelmente se aconteceu alguma coisa, se pisotearam seus direitos, você é que procurou

Peço a você que por mim e por todas as mulheres que foram caladas, silenciadas, que tiveram suas vidas e seus sonhos destruídos, levante a sua voz. Vamos lutar, eu com vocês em espírito, e prometo que um dia seremos tantas que não haverá uma quantidade de sacos plásticos suficiente para nos calar.”

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