morar sozinha

Cheguei relativamente cedo em casa, a fim de esquecer o mundo lá fora. Adentrei os meus domínios jogando a bolsa para o lado e os sapatos para o outro (tem coisa melhor que tirar os sapatos depois de um dia cheio?). Fiz meu guacamole especial que ambientei com uma cerveja geladinha. Perdi-me no Netflix por horas, zapeando entre um filme aqui e uma série ali, obedecendo ao meu bel prazer. Tomei um banho demorado e relaxante. Na saída do chuveiro, uma presença inesperada. Uma barata circulava perto da pia. Faço uma ou duas tentativas de esmagá-la, mas a safada desaparece no meio das minhas coisas. Nojo! Apesar do desconforto, decido que nada tiraria a tranquilidade caseira daquela noite de terça-feira. Jogo-me na cama pelada, como gosto de dormir. Coloco um filme sexy, ajusto a meia luz do abajur e faço menção em pegar o meu brinquedinho que fica guardado do lado da cama. Não dá tempo. A barata do banheiro cruza o quarto num rasante certeiro para aterrissar na minha bochecha esquerda. Pandemônio. Lençóis para o ar, vibrador voando, controle remoto no chão. Oriento-me por um segundo e lanço o celular nela, para então ter a fronha, lençol e celular lambuzados com os resquícios melequentos de barata. Foi o episódio mais bizarro envolvendo o meu quarto (e olha que eu tenho a minha cota de bizarrice naquele ambiente).

O meu castelo tinha sido invadido, e muito embora eu tivesse conquistado certo sucesso, o rebuliço me deixara tremendo na sala até às 4:00 da manhã. Essa p*** não sabia que eu era a dona do pedaço?

Faz 10 anos que eu decidi morar sozinha. E muito embora eu não me arrependa da decisão, tem momentos que eu queria mesmo era morar no colo da minha mãe. “Barata boba e feia!” (beiço de criança aqui). Morar sozinha coloca em cheque o que de fato é ser responsável pela manutenção de uma casa e te obriga a bancar a decisão mesmo no perrengue. E cacete, isso não é brincadeira. Diferentemente da casa dos nossos pais, as roupas não se lavam “sozinhas”. E tente esquecer uma meia preta entre as roupas brancas para assumir o cinza como a tendência da próxima estação. Quando você mora sozinha, não tem cronograma para lavar a louça. Você lava quando bem quiser, pois é dona do seu tempo – até descobrir que as baratas adoram essa sua preguiça, e aprende a não deixar nem uma colher suja na pia. Morando sozinha, é importante descobrir bem cedo o seu limite alcoólico porque ninguém abrirá a porta pra você numa eventual discussão com a fechadura – eu prometo (eu já tentei). Ao decidir ter o seu próprio lugar, você aprende rapidinho que se esquecer de comprar papel higiênico, vai ter que pular do vaso pro chuveiro. Vai ficar com raiva de você mesma, toda vez que se esquecer de tapar a pasta de dentes e ela endurecer (afinal, quem mais culpar?). Não poderás gastar o aluguel em sapatos ou em viagens, e brigarás pela redução das despesas de condomínio – talvez até frequente as reuniões de condomínio. Respeitarás o horário de silencio. E ficarás vermelha ao encontrar o vizinho do andar de baixo, depois de uma noite de romance (selvagem).

Quando se mora sozinha, a gente finalmente entende aquela frase do pai que alegou a vida inteira não ser dono da companhia elétrica, e aprende a apagar as luzes. Inclui a rota do caminhão de lixo no alerta do celular. Aprende a não esquecer o potinho com restos do almoço durante um mês na geladeira, para evitar descobrir uma nova espécie de vida dentro do recipiente, desejando jogar o pote fora a ter de lavá-lo. Sendo a dona da casa, vai perceber (e se irritar) com a triste realidade de como você perde cabelo, um minuto após ter ligado o aspirador. Fará um curso extensivo em produto de limpeza, e descobrirá da pior maneira de água sanitária mancha. Ficarás possuída com o preço do quilo do tomate. Terá dúvida entre adotar um gatinho ou manter intacto o sofá de couro. Entenderá que “decorar” o seu primeiro apartamento tem muito mais a ver com administrar móveis, presentes e tranqueiras doados ou presenteados, do que efetivamente contratar um designer de interiores e investir cifras em tapetes arraiolos vindos de Portugal – e vai pirar dentro da Leroy Merlin ou Tok& Stok. No natal, vai dar pulinhos de alegria ao ganhar um jogo de copos novos, e vai beijar sua vó na boca ao ser contemplada com uma panela de pressão só sua. E vai ter medo de usar a panela de pressão que é só sua. Mas vai aprender.

Falando do universo feminino, mais especificamente, os nossos desafios podem incluir tarefas de força, como aquele vidro de palmito que acha que é mais teimoso que você. Ou aquele armário que deve ser trocado de lugar. E como toda mulher vai aprender que o truque não é força, mas jeito. Ou trabalhar a humildade pedindo ajuda pros vizinhos, ou pras amigas de fé. Insetos, vermes e outras pragas bíblicas podem trazer maiores dificuldades para o time da calcinha. Em todo este período de “voo solo”, já enfrentei – além da barata atrevida desta semana – uma infestação de morcegos no ar-condicionado e uma de ratos em um flat que morei em Londres. Nunca vou me esquecer da minha primeira tentativa de comprar uma ratoeira. O atendente explicou “esse aqui cola o rato no chão”, e eu concluí: “sim, e daí ele adormece e morre, não é?”. “Não” – o funcionário me interrompeu – “a moça pega um pau e mata o rato, neh. PAHHHH!!” – gritou, me assustando, enquanto fazia um gesto violento com o braço. Saí chorando da loja, frustrada com a minha incapacidade de matar um rato a pauladas, e dormi durante 15 dias abraçada numa vassoura com barricadas de almofadas em volta da cama, até o dia em que o departamento de Controle de Pestes apareceu e resolveu a infestação. É, ninguém disse que ia ser fácil ser a dona do pedaço.

Ok … baratas, faxina, mobília, aluguel. Ora, mas por que diabos a gente sai de casa então? E larga o conforto do ninho de papai e de mamãe para desentupir o próprio ralo? Bem, talvez seja porque não há sensação melhor do que ser a dona do próprio ralo. Do próprio sofá.  Do próprio espaço, do próprio tempo. Aprendemos a gostar de cozinhar um belo jantar, nem que seja pra comê-lo sozinha. Gostamos de ter espaço pros livros que amamos, os DVDs que adoramos e os souvenirs de viagens que antes nunca tiveram seu devido espaço. Talvez neste espaço caiba até um violão, para finalmente aprendermos a tocar nossa música preferida. E quem sabe depois de desistir dele, o trocaremos por cortinas novas – a decisão é toda minha, sua, nossa. Com este lugar que é só seu, vai reunir amigos, celebrar momentos, curtir amassos que só podem ser compartilhados com privacidade. Vai se virar. Entender o manual da secadora, e instalar o próprio fogão novo. Vai decidir plantar manjericão na janela, ou bananeira no meio da sala. Quando aprendemos a morar sozinha, curtimos a bagunça da mesma forma que adoramos organizar. Porque esse pequeno universo, essa fortaleza reservada, esse forte de guerra, é o nosso refúgio, nossa recarga, e é a nossa cara. Do porta-retratos a cor do rodo. É o suprassumo da nossa independência, liberdade e eterno aprendizado.

Todas as pessoas deveriam morar sozinhas por um tempo, eu acredito. Gosto de pensar que esse movimento edifica a perseverança, fortalece a nossa capacidade de lidar com as crises – financeira, de consciência, “insectológica”. Pode até ser um estágio para uma vida a dois. Mas antes disso, esse processo pessoal é importante porque bota as tarefas da casa em perspectiva, e mostra a grandeza de termos momentos de introspecção. Sozinhos. E em silêncio. Como é bom poder ouvir o nosso silêncio de vez em quando. E claro, o mais importante para esse passo: tomar a decisão quando fizer sentido e sentir-se preparada – e não para fugir dos pais, ou montar um matadouro de boys. Muito maior que isso, vai decidir morar consigo mesma, e descobrir que é bem fácil ser feliz sendo a dona do pedaço.

Ouviu bem, dona Baratinha?! Manda um recado pras tuas irmãzinhas e avise para ficarem longe. Diga a elas que aqui nesta morada – pelo menos por enquanto – só tem uma dona do pedaço.

antonianodiva.com.br

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