pés

Eu sou cria da minha mãe, e ainda assim, sou a menininha do papai. E você, pai, sabe bem disso porque nada foi fácil desde o dia que eu cheguei. Assim que foram espalhados laços rosa pela casa, você entendeu que as coisas iam mudar. E mudaram mesmo. Mudaram porque os teus “simplesmente porque não” nunca foram bem-vindos pela menininha do papai. Logo você, chefe de família, empresário, dono de si, se explicando para duas chuquinhas enfezadas com roupinha de Hello Kitty. Quem diria que botar mulher no mundo, ia te fazer reavaliar todo o universo feminino?

Não é fácil ser pai de mulher, eu imagino. Você gastou rios de dinheiro em fraldas infantis, e mais outros em fraldas de mocinha. Deu-me meu primeiro sutiã (que a mãe escolheu, obvio). Pagou ginecologista, e jamais me perguntou se estava tudo bem “lá embaixo”, morrendo de medo que eu efetivamente respondesse – qualquer que fosse a resposta. Depois vieram os garotos, e você inaugurou um novo inferno particular. Aturou no osso as piadinhas machistas dos seus amigos, dizendo que você havia passado de consumidor a fornecedor. A piada já não era mais tão engraçada quando o pedaço de carne era a menininha do papai, não é mesmo? Você pela primeira vez teve medo do mundo-homem, e do que ele podia fazer com a sua garotinha. Esteve lá, a cada coração partido, com o seu próprio nas mãos sem saber muito que fazer. Esbravejou sozinho por cada FDP que eu chamei de amor.

Se eu quisesse compreensão e aconchego, recorria a minha mãe. Você era estrutura, limite e controle. Pegou-se de calças curtas quando me viu tão parecida com você, ainda que divergindo tanto e tão frequentemente. Parecida contigo nas virtudes do meu bom coração, no jeito amigo, e na determinação de achar que eu posso mudar o mundo. Parecida também nas falhas, nos tropeços, nos meus excessos e exageros. Como corrigir no outro aquilo que não se consegue em si próprio? – muitas vezes você se perguntou. Então a gente teve que usar a boa e velha tolerância para aprender a conversar e se entender, e seguiu nesse processo de apoio e contestação a cada novo desafio.

Você, pai, foi o cara que quis facilitar todos os caminhos, me mostrar todos os atalhos. Na verdade você tenta fazer isso até hoje, ainda que eu insista em traçar minhas próprias rotas desde os primeiros passos. Lutou para evitar todo tipo de dor, e teve que se convencer que muitas vezes eu precisava dela para entender o mundo. Eu sei pai, se você pudesse eliminaria todas as arestas pontudas do meu crescimento, cercaria todas as quedas da minha evolução e acolchoaria cada impacto das minhas decepções. E talvez por isso que a gente brigue tanto. Na minha imaturidade emocional, eu sempre achei que você estava me protegendo, com medo que eu não fosse capaz. Você sabe que sou. Você é quem não é capaz de me ver sofrer, hoje sei.

Pai, a gente precisa conversar. Queria te dizer que ainda que seja difícil, não vai dar pra você segurar a minha mão por todo o caminho da vida. Eu vou ter que aprender cada vez mais a ter equilíbrio próprio. Eu sei que se eu cair você estará sempre lá pra me ajudar. Mas eu também preciso aprender a me levantar sozinha. Sacudir a poeira, limpar os joelhos ralados e seguir caminhando. Então o que queria mesmo era te tranquilizar e agradecer. Eu sei que é difícil ver que eu já corro o mundo com minhas próprias pernas – saiba que a minha coragem brota de você. Entenda que eu nunca vou poder negar que eu só consigo dar os passos de mulher que dou hoje, porque dancei segura por muito tempo em cima dos teus pés. Você foi e sempre será o primeiro homem que eu amei. Obrigada por amar incondicionalmente a menininha do papai.

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